Sobre o transporte coletivo e a mobilidade urbana...
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TRANSPORTE COLETIVO NAS PERIFERIAS METROPOLITANAS
Suely dos Santos Coelho e Angelo Serpa
Uma breve introdução
Quando surgiram em Londres, no século dezessete, os carros de aluguel puxados a
cavalos não eram muito populares entre os comerciantes, porque atrapalhavam a venda
e produziam muito barulho nas ruas calçadas com seixos. Mas, foi só no início do
século vinte que o andar a pé começou a ser substituído pelo trânsito sobre rodas como
forma predominante de locomoção (TUAN, 1980). O aspecto das cidades modificou-se
então de modo radical.
Com residências mais espalhadas e comércio muito mais descentralizado que outras
cidades do seu porte, Los Angeles é um exemplo típico de cidade do automóvel. Com
seu sistema de vias expressas e suas ruas comerciais retas e compridas, a cidade
despreza os pedestres: algumas ruas não têm calçadas, outras são excessivamente
barulhentas, outras, extensas artérias adequadas apenas à velocidade dos carros.
BARBOSA (1980) vê, no início do pós-guerra, com a expansão da indústria
automobilística no Brasil, uma acentuada redução da participação do transporte público
de massa no total de viagens geradas nos grandes centros urbanos do país:
As facilidades de crédito na compra de automóvel particular (crédito direto ao
consumidor), a propaganda maciça por parte dos fabricantes de automóveis,
colocando-o como símbolo de uma condição social elevada e característica de um
indivíduo bem sucedido, as facilidades de estacionamento (...) e um código de
obras e edificações inadequado, induziram a que a política de investimentos em
transportes públicos se consubstanciasse na implantação de vias elevadas, vias
expressas, túneis, anéis rodoviários e tudo mais que pudesse expandir o consumo
dos milhares de automóveis colocados anualmente no mercado. Investimento esse
realizado em detrimento de uma política de transporte de massas voltada para a
articulação das etapas de viagens (BARBOSA, 1980).
Os congestionamentos e a poluição provocados pelos automóveis atingem tanto o
motorista quanto o passageiro que viaja em pé no ônibus lotado. O carro particular
representa mau uso das vias públicas porque sub-utiliza o espaço urbano. No lugar de
um veículo particular (que em São Paulo circula com 1,5 passageiros por dia) cabem
oito passageiros de ônibus. Um automóvel produz 25 gramas de monóxido de carbono
por quilômetro - perto de 18 gramas por pessoa: isso é 28 vezes a emissão per capita de
um passageiro de ônibus, cuja média é de 0,6 grama (FOLHA DE SÃO PAULO,
13/4/97). Conclusão: Quem usa carro polui o ar de quem não usa e tira tempo de quem
está no ônibus.
Uma política de transportes adequada deveria buscar criar complementaridades e não
acentuar a competição entre as diferentes modalidades, pois, ao se criar
complementaridades, estaríamos explorando suas vantagens comparativas. Para isso,
faz-se necessário uma coordenação satisfatória dos fatores de ocupação do solo (meios
de transporte) e a dimensão física (estrutura viária), que, juntos, vão gerar as correntes
de tráfego nas cidades (BARBOSA, 1980).
As relações de causa e efeito dos agentes integrantes do sistema de transportes (poder
público, empresa e usuário) geram diferentes atribuições, a saber:
Para o poder público, podem ser definidas como sendo o ato de estabelecer as
diretrizes, autorizar e fiscalizar a operação dos serviços no que tange às empresas
e promover a constante reavaliação das reais necessidades no que se refere aos
usuários. Para o setor empresarial destacam-se junto ao poder público as
solicitações de tarifas adequadas e de uma estrutura viária em constante processo
de conservação e reformulação e em relação aos usuários a cobrança apenas das
tarifas determinadas pelo poder concedente e a manutenção de um nível de
serviços constante ao longo dos anos. Ao usuário, (...) cabe exigir o atendimento
estabelecido pelo poder concedente e efetuar o pagamento das tarifas autorizadas
e fazer reivindicações junto ao poder público no que diz respeito à fiscalização
dos serviços (BARBOSA, 1980).
Evidentemente concorda-se aqui com os pressupostos de HICKS JÚNIOR &
SEELENBERGER (1981), que defendem o planejamento e a avaliação do transporte
metropolitano a partir de dois objetivos principais: eficiência econômica, entendida
como a maximização dos benefícios líquidos provenientes da acessibilidade da
população às oportunidades metropolitanas, e justiça social ou equidade, visando,
principalmente, àquela parte da população mais dependente do sistema metropolitano de
transporte, basicamente o transporte coletivo.
Mas, ao contrário dos autores citados anteriormente, não se pretende aqui apenas
“fornecer subsídios metodológicos para identificar diretrizes da política pública,
visando a melhorias de acessibilidade, principalmente a da população mais carente de
serviços de transporte, às oportunidades econômico-sociais que a região metropolitana
fornece” (HICKIS JÚNIOR & SEELENBERGER, 1981), mas, sobretudo, refletir sobre
o tratamento desigual dado às periferias metropolitanas com relação aos investimentos
públicos nos equipamentos de uso coletivo, a partir de alguns estudos de caso em
bairros de urbanização popular na Região Metropolitana de Salvador.
Acreditamos, entretanto, que as pesquisas podem também subsidiar um planejamento de
transportes descentralizado em direção aos bairros, a partir de demandas locais melhor
analisadas e explicitadas. Queremos crer também que os estudos de caso aqui
apresentados são exemplares no sentido de entender o conflito de classes das metrópoles
capitalistas, expresso em um transporte coletivo desigual e excludente, comum a outras
áreas metropolitanas do país.
Pois, como afirma BRAGA (1994),
Muito cedo o trabalhador aprende que a cidade é um todo articulado e que, para
sobreviver nela, é preciso interligar áreas distantes em curto espaço de tempo. É
preciso saber e poder ir e vir, é preciso descobrir, no emaranhado de fluxos e fixos
da cidade, as estratégias de sobrevivência, como os locais onde existe oferta ou
possibilidade de trabalho, onde são encontrados os produtos mais baratos, onde
existe a possibilidade de lazer mais acessível, onde estão os postos de atendimento
médico, os postos policiais, as repartições públicas, os terreiros, as igrejas, etc.
(BRAGA, 1994).
Caros e ruins, ruins e demorados: é assim que Milton Santos (1987) vê o transporte
coletivo nas periferias metropolitanas. Em sua obra “O Espaço do Cidadão”, SANTOS
questiona como o trabalhador pode conciliar o direito à vida e as viagens cotidianas
entre a casa e o trabalho, que tomam horas e horas do seu tempo:
A mobilidade das pessoas é, afinal, um direito ou um prêmio, uma prerrogativa
permanente ou uma benesse ocasional? Como há linhas de ônibus rentáveis e
outras não, a própria existência dos transportes coletivos depende de arranjos nem
sempre bem-sucedidos e nem sempre claros entre o poder público e as
concessionárias. Aliás, com o estímulo aos meios de transporte individuais, as
políticas públicas praticamente determinam a instalação de um sistema que
impede o florescimento dos transportes coletivos (SANTOS, 1987).
Ref. COELHO, S. S.; SERPA, A. Transporte Coletivo nas Periferias
Metropolitanas: Estudos de Caso em Salvador, Bahia. Geografia, Rio
Claro-SP, v. 26, n. 2, p. 91-126, 2001.
Disponível em: <http://www.esplivre.ufba.br/artigos/Suely_Angelo_TransporteColetivo.pdf>
Acesso em: 16.06.2013